sexta-feira, 1 de abril de 2011

Pensar a Ilha dos Valadares

De acordo com Evans Pritchard, não se pode obter respostas acerca do modo como vive uma sociedade, sem antes refletir sobre as perguntas que irão conduzir esse caminho de pesquisa. Nesse sentido, o autor coloca que um ponto importante é o de se absorver de conhecimento teórico, um treinamento rigoroso para então adentrar ao campo de pesquisa.

Assim, neste pequeno exercício etnográfico, se tomou como ponto de partida a leitura de um texto de Bronislaw Malinowski acerca de rituais e encantamentos realizados pelo povo trobriandês. O método deste exercício foi pautado em observação do meio social, com escrita acerca do cotidiano, complementado com o uso de fotografias.

Desta forma, coloca-se a questão de compreender alguns pontos do objeto de estudo, sendo este a população da Ilha dos Valadares no percurso entre o Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal do Paraná à Associação de Cultura Popular Mandicuera. Os pontos a serem compreendidos foram, que tipo de relação social a população da ilha mantém com o restante da cidade e quais são as suas crenças em relação à religiosidade popular.

Nesse sentido, o conhecimento prévio acerca da ilha e dos habitantes desta pode fornecer alguns indícios de como é o convívio destes com o restante da cidade de Paranaguá, tomando o cuidado de não tratar esta parcela da sociedade como estranhos à cultura urbana, uma vez que participam do ciclo da sociedade.

Logo, Pritchard destaca que “o que se traz de um estudo de campo depende muito do que se leva para ele” (p. 300), portanto, o conhecimento adquirido antes de entrar na pesquisa de campo pode revelar intencionalidades de estudo sobre determinada sociedade.

Diante disso, logo que se percorre com o início da ponte da Ilha dos Valadares, da parte do continente da cidade de Paranaguá, se percebe um grande fluxo de bicicletas e pessoas aos redores do acesso a ponte e um grande número de pontos comerciais, especificamente bares, onde as pessoas fazem paradas para se relacionar entre si.

De imediato nosso pequeno grupo é percebido como “estranho”, pois há uma característica comum por haver o uso de camisetas com a mesma estampa do projeto Etno-Foto-Caiçara, bem como o uso de câmeras fotográficas e de cadernos de anotações, isso causa um estranhamento e Pritchard destaca esse ponto, argumentando que um caderno pode atrapalhar o convívio com outras culturas e o contato com estas (p. 305).

Continuando a observação, nos aproximamos de um senhor. Uma análise prévia nos revela que é um vendedor, assim, perguntamos seu nome e há quanto tempo faz suas vendas no local. Seu nome é José e, de acordo com sua resposta, faz isso há 30 anos, estando há 4 na ponte, vendendo objetos pequenos (pilhas, eletrônicos, guarda-chuva, controle remoto).

Próxima a ponte, há uma praça onde pessoas constantemente se encontram para conversar, sentar em bancos, fazendo parte de um cotidiano comum entre as pessoas que passam por ali todos os dias, nesse espaço de sociabilidade nota-se um grande fluxo de trocas econômicas e culturais, pois há um conjunto de pontos comerciais, onde essas mesmas pessoas movimentam a economia local. A presença de turistas também é constante, nós mesmos fomos confundidos como tais.

Nesse local avistamos algumas senhoras vendendo produtos artesanais, grande parte da ilha parece fazer da mesma atividade, pois notamos um número grande de pessoas que realizam tal tarefa, isso pode refletir uma certa dificuldade em conseguir emprego em setores que demandam uma formação específica e técnica. É também fácil de perceber que muitos homens da localidade são pescadores, possuindo seus próprios barcos, isso reflete um modo de vida que se choca com as profissões atuais, onde as pessoas precisam nutrir seus corpos de atributos, se tornando objetos, mercadorias vendáveis. Zygmunt Bauman coloca esse fator como a comodificação dos indivíduos.

Com efeito, temos na ilha situações que se chocam e que se complementam, ao mesmo tempo que se distanciam umas das outras, pois o mundo atual, baseado em um sistema capitalista, hoje uma sociedade de consumidores, bate de frente com esse mundo que parece andar lentamente, mas que sente as mudanças da economia, se transformando de uma ilha com muita vegetação, em um emaranhado de concreto.

Percorrendo ainda o mesmo trecho, vemos que a Igreja Católica possui a sua imponência ao lado da praça, onde é vista facilmente por todos, mesmo estando fora da ilha se consegue ver a igreja. Nesse aspecto, observamos que a ilha possui uma imensidão de igrejas protestantes, a influência da religião é forte, nas casas se consegue notar bíblias abertas, quadros fazendo referência à imagens religiosas. Isso é possível de perceber devido a distância muito próxima das casas com as ruas, muitas casas sem muro.

Assim, Pritchard coloca uma questão de que, se deve estudar o que a sociedade mais manifesta, ou seja, o que se encontra nessa sociedade (p. 300), partindo das incidências dessas particularidades, esses indícios que mostram o quanto a ilha é religiosa significa que isso pode revelar um sistema de relações sociais, partindo das práticas religiosas entre pessoas, e de pessoas com seus mitos religiosos, dado a ser ponderado e analisado.

Saindo do perímetro da praça e da igreja, encontramos uma rua interditada, pelas condições da rua, vimos que se tratava de um protesto, mais a frente estava uma faixa pedindo uma atenção da prefeitura da cidade com relação ao estado da rua, uma vez que está sem concreto e com muita lama. No mesmo ambiente escutamos um som de cavaquinho, um senhor chamado Ademir, com vinte anos de estudo do instrumento, tocava em companhia de uma moça, provavelmente sua parente, mais nova, aparenta ter menos de vinte anos e também toca o instrumento, ambos tocavam, construindo uma melodia que dava para se ouvir alguns metros dali.

Com relação aos comentários de Pritchard, em analisar os sentimentos de um povo, conseguimos acesso a um pequeno galpão, ou algo assim, identificado como “Casa do Fandango”, lá dentro havia muitas mulheres organizando as fantasias da escola de samba “União da Ilha”, nossa fotógrafa registrou várias fotos durante o percurso, aqui ela conseguiu tirar fotos, num primeiro momento houve uma proibição por parte de uma das responsáveis pela escola de samba, provavelmente para evitar plágios de fantasias. No momento em que se ficou sabendo que fazemos parte de um projeto de estudo, o acesso para tirar fotos foi liberado.

Nesse contexto, a diretora da escola, Janete, mencionou que a Igreja faz vistas grossas com relação à representações de sinais religiosos nessa manifestação popular, pois comenta que o padre da Igreja Católica localizada na praça da ilha, proibiu a representação de um crucifixo no que era pra ser uma imagem da Igreja do Rocio. Historicamente vemos que a Igreja Católica se incomoda com manifestações religiosas populares, um exemplo é a romaria do Divino Espírito Santo, o padre não participa dessa romaria e proíbe o culto a bandeira do Divino. Isso tende a mostrar o poder da Igreja, apenas essa instituição mantém o poder do discurso da religião católica.

Um pouco mais atrás, entre os séculos XVI e XVII, Carlo Ginzburg mostra na obra Os Andarilhos do Bem, como a Igreja Católica distorceu dentro da cultura popular, a imagem e o significado de cultos agrários, voltados para a busca de campos férteis para a colheita, se transformando em cultos satânicos, rituais de orgias onde as pessoas praticantes desses cultos, se encontrariam com o diabo. Por desenvolverem crenças religiosas, mesmo fundamentadas no catolicismo, a Igreja se incomodou por muitas pessoas estarem procurando esse tipo de manifestação do que o proposto por ela. Então a proibição e perseguição desses cultos pela Inquisição, coloca Ginzburg, foi um dos fatores de distorção do significado primário dos cultos agrários.

Diante disso, nessas particularidades, colocamos que há uma preocupação por parte da Igreja Católica em relação ao grau de tais atividades populares, uma vez que estas fujam da ordem religiosa, o discurso católico de coerção entra em funcionamento e busca estabilizar a ordem novamente.

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo: A Transformação das Pessoas em Mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.

GINZBURG, Carlo. Os Andarilhos do Bem: Feitiçarias e Cultos Agrários nos Séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

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